Lobisomens - O Apocalipse
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Mensagem por Akira Toriyama Seg Dez 29, 2014 7:50 pm

Olá, pessoal, tudo certo? Pra quem não sabe, eu sou escritor. Sempre quis escrever algo relacionado a Lobisomens, mas nunca consegui ter muitas ideias. Tempos atrás, resolvi escrever um pouco com um personagem que me apareceu na mente, e a ideia de criar a história de um lobisomem me voltou à cabeça, Apesar de tudo, não é fielmente baseado no jogo, embora eu tenha usado muitos elementos de LoA como inspiração para o que eu escrevi mais tarde; então, não esperem ver algo totalmente idêntico ao cenário do jogo, mas uma história com vários elementos em comum. Seguindo a sugestão do Ivan, vou postar a história aqui. Espero que vocês curtam. Comentários, elogios e críticas construtivas são totalmente bem vindos.
***

Ômega

Capítulo I

Férias, pernilongos e sonhos estranhos

Eu estava correndo. Não sei dizer por que corria, ou para onde corria, mas corria de maneira desesperada, com a respiração ofegante e o coração descompassado, típico de quem não é minimamente adepto de exercícios. Minhas pernas seguiam um ritmo pesado, cansado, quase cedendo a tentação de parar, ao mesmo tempo que acossado pela chibata do desespero típico de fugitivos. Estava claro: eu fugia. Mas não sabia do que.

Meus pés se embaralharam em algum momento, talvez em alguma raiz de árvore que crescia para fora do chão. Seria poético dizer que foi assim que meu nariz encontrou a terra úmida e fria, mas é bem mais provável que eu tenha tropeçado em meus próprios passos, tendo em vista que a pessoa menos atlética deste mundo ainda vai se sair melhor que eu em uma corrida. Daria até um toque trágico na história toda, acentuaria meu desespero e transmitiria com melhor eficácia aquele clima sufocante de uma fuga. Entre o real e o cativante, escolho o segundo, porque o primeiro é demasiado fácil de se obter e muito difícil de se impressionar.

Levantei-me, rosto ardendo por causa do atrito com a terra, roupas sujas. Meu coração ainda batia descompassadamente, recuperando o fôlego da corrida prolongada e da queda. Suor escorria pelo meu rosto, ardia meus olhos. No céu, acima das árvores, céu escuro, Lua Cheia se escondendo atrás dos galhos. À minha volta, árvores e mais árvores, terra úmida, grama molhada de sereno e neve que congelava meus pés. Por algum motivo, eu estava descalço.

Andei por alguns metros, tentando desvendar aquele cenário. Procurava por qualquer sinal de que aquele lugar me era familiar, sem conseguir encontrar. Para alguém que pouco conhece a floresta, todas as árvores são iguais e a paisagem se mostra claustrofóbica em determinado momento. Não gostava daquilo. Não gostava do frio. Não gostava do cansaço. Não gostava da sensação de ser perseguido.

Então, eles apareceram. Eu não os ouvi, nem tive qualquer indício de sua presença ali, mas eles estavam lá, ao meu redor. Vinham aos montes, como se fossem uma única criatura disposta em vários corpos, movendo-se num sincronismo quase perfeito. Estava cercado, sem nenhum ponto onde seus olhos não me fitavam, brilhando na escuridão. O tempo pareceu congelar. Minha respiração diminuiu, um floco de neve ficou suspenso no ar, sem terminar sua trajetória. Os olhos me fitavam, brilhando na noite.

Eu estava entre os lobos.
***

Súbito, acordei. Estava em minha cama, ouvindo um grilo do lado de fora. As primeiras noites na fazenda eram sempre assim, cheias de sonhos estranhos e pressentimentos esquisitos que não existiam na vida agitada da cidade. Sentei, olhando para as dobras do lençol. Esfreguei os olhos e procurei o relógio no criado mudo ao lado: quatro da manhã. Não demoraria muito tempo e meu avô iria despertar com sua disciplina estoica e acordar todos para um dia no campo cheio de tédio e mosquitos.

Deixei-me cair no travesseiro, num baque amortecido pelas várias camadas de tecido. O teto acima de mim ainda tinha resquícios da minha vida anterior, quando visitar meu avô era uma tarefa divertida, conquistada a base de notas boas e cama bem feita diariamente — adesivos de estrelas, planetas e foguetes, daqueles que se brilham num tom florescente de verde quando fica escuro. Percorri um trajeto imaginário com o olhar, passando por vários planetas até chegar à Lua, quase no centro do teto, próxima a luminária. O sono tinha partido, e só voltaria durante o dia, quando meu avô estivesse no ápice de sua disposição sexagenária.

De olhos pregados no teto, passei o tempo que me restava. Embora o sono não estivesse mais por ali, a vontade de passar tanto tempo quanto pudesse no meio dos lençóis era imensa, perdendo apenas para a vontade que eu tinha de voltar para o aconchego da cidade cinzenta e poluída que me servia de casa desde sempre. Lá fora, nenhum som além do grilo que fazia sua serenata irritante, alguma coruja, pernilongos que travavam uma batalha infernal contra mim. O ser humano tem sorte de guerrear apenas com seus semelhantes. Nenhum tanque de guerra é capaz de fazer frente ao tormento que um pernilongo causa.

Como todas as batalhas contra pernilongos, a vitória foi do inseto miserável, sem possibilidade de questionamentos. Debati-me na cama como se fosse um louco, braços e pernas para todos os lados na esperança de acertar o maldito. Alguns segundos de silêncio, e eu me sentia um herói de guerra depois de uma batalha intensa. E novamente, o zumbido agudo e contínuo do maldito parecia zombar de mim.

Meu chinelo fez um estrondo na madeira descascada da porta. A velha cestinha de basquete tremeu com o impacto. O silêncio imperou.

— Ganhei — murmurei, e voltei a me deitar, sentindo o cansaço digno de um trabalhador. Poderia ser considerado uma celebridade, ser aclamado pelo povo por ter derrotado o terrível pernilongo que impedia meu sono e poderia impedir o sono de qualquer outro. Autógrafos, entrevistas, fotos não, por favor. Flashes ofuscam minha visão.

Os minutos após a minha gloriosa batalha foram gastos com conjeturas a respeito dos grandes escritores de fantasia medieval. Sendo eu um escritor, poderia pensar em inúmeras coisas que me faziam gostar das histórias fantásticas do Tolkien ou do Lewis. Batalhas, por exemplo, me agradam muito. Discursos de batalha, mais ainda. Gosto particularmente deles, principalmente aqueles recheados de bravatas épicas destinadas a serem lembradas pela eternidade, inflamando a coragem de cada soldado em suas fileiras. Poderia lembrar sem muito esforço do discurso de Aragorn antes da batalha em Mordor, mas isso seria a beira do absurdo. Ninguém me perguntou o quão nerd eu posso ser, e provavelmente agora não seria um bom momento para descobrir isso.

De qualquer maneira, uma história fantástica não é uma história fantástica até ter um dragão. Todos nós precisamos de dragões ou então a saga não se torna tão épica assim. Mas, pensando melhor, dragões poderiam ser substituídos por pernilongos. Estes sim seriam oponentes difíceis de serem derrotados. Não lançariam fogo, mas qualquer exército desejaria enfrentar uma rajada de chamas saindo da garganta de um dragão do que um pernilongo zumbindo em seu ouvido. Aposto meu fígado nisso.

Mas pernilongos não seriam vilões tão carismáticos quanto dragões. Pernilongos são banais, por mais irritantes que possam ser. Não se acha um dragão em cada esquina, e pernilongos existem sobrando no mundo, para o nosso tormento. Novamente, entramos naquele embate entre o real e o cativante. Novamente, fico com o primeiro — assim como a realidade, pernilongos são fáceis de se obter e nada fáceis de se combater. E não há nada de impressionante nisso.

Poderia ter escrito um ensaio sobre isso, relatando sobre o quão interessante é conjeturar a respeito de como um dragão contribui para uma história fantástica tão bem quanto um pernilongo para uma noite de sono precário. Um ensaio longo, cheio de comparações, citações de grandes teóricos da literatura, exemplos de inúmeras histórias fantásticas com dragões e várias páginas de vocabulário difícil para fazer qualquer leitor mediano se sentir um burro perto do que eu escrevo. E, obviamente, um ensaio destinado a nenhum lugar além da lata de lixo, porque esse é o destino de qualquer ensaio a respeito de literatura. Nenhum escritor que se prese deve perder tempo e energia escrevendo teoria, uma vez que ninguém vê utilidade em teoria. Serve apenas para inflar o ego de um acadêmico sem um pingo de capacidade.  

Meu raciocínio foi interrompido com a porta sendo brutalmente escancarada, como se alguma equipe da SWAT estivesse invadindo meu quarto depois de um explosivo destruir a maçaneta. Imaginei um monte de tiras entrando no quarto com armas apontando em todos os lados, prontas para atirar e me transformar num queijo suíço. Tentei me cobrir com o lençol, na esperança de que aquilo fosse me proteger de qualquer coisa que estivesse adentrando meu quarto, mesmo sabendo que isso seria inútil contra qualquer arma. Pensei em mil coisas para evitar o meu trágico fim. Talvez correr para debaixo da cama, ou uma tentativa de diálogo. Não me matem, sou inocente. Meu maior crime foi ter mostrado a língua para minha professora de matemática na quarta série quando ela estava de costas para mim.

Willian O’Callaghan explodiu em gargalhadas. Aos poucos, fui saindo do meu estado de choque, lembrando que não havia razões para uma equipe da SWAT entrar no meu quarto e que meu avô adorava me fazer esse tipo de brincadeira suja, saída de suas teorias retardadas a respeito do que eu fazia no meu quarto àquela hora da madrugada — não, estimado leitor, ele nunca pensou que talvez, só talvez, eu pudesse estar dormindo. Na mente pervertida daquele velho, eu sempre estaria ocupado demais com alguma edição da Playboy para ter sono.

Ele entrou no quarto e se jogou na minha cama, passando o braço pelo meu pescoço, num golpe de luta livre.

— Te peguei, seu pequeno pervertido! — gritou, esfregando o punho fechado em meu couro cabeludo. Debati mais um pouco, sacudindo minhas pernas de maneira parva e inútil, arrancando mais algumas gargalhadas daquele sádico. Ele me soltou depois de um tempo, me dando tapas na cabeça. — Hora de parar com suas perversões, moleque. Vamos acordar, porque o dia começou.

Meu avô saiu do quarto, depois de me deixar tonto, tentando desprender o lençol que ficara preso em sua bota. Quase tropeçou, mas ficou só no quase, graças a minha solidariedade para com os seus sessenta e dois anos. Seria muita covardia da minha parte fazer o velho cair de cara no chão, certo? Então deixe que ele me bata. Ele merece achar que é jovem. Não gosto de praticar atos covardes como bater em velhos.

Que fique claro: eu deixei ele ganhar.

Levantei. Eram cinco e meia da manhã e eu tinha enfrentado duas batalhas: uma contra o pernilongo — uma vitória memorável — e outra contra com o meu avô — que merecia muito mais a minha solidariedade do que as minhas verdadeiras habilidades de luta. Massageei meu pescoço, procurando pelos meus chinelos. Um estava perto da porta, o outro debaixo da cama, junto com alguns gibis e a pequena bola de basquete que eu costumava acertar na cestinha pregada na porta nos momentos de tédio.

Começar o dia na fazenda do velho Bill era uma verdadeira batalha — ou uma sucessão delas. Havia pernilongos, depois meu avô e então uma luta pela sobrevivência sobre quem chegava mais rápido ao banheiro. Quando eu era criança, passava as férias por aqui junto com meus primos, o que significava que as garotas nunca podiam chegar aqui antes de nós, ou estaríamos fadados a uma espera eterna até elas terminarem de fazer uma chamada com os fios de cabelo, dando nome a cada um deles. Tudo bem, estávamos todos crescidos agora, mas mulheres nunca deixam de ser mulheres e alguma coisa no DNA delas determina que toda ida ao banheiro deve ser uma peregrinação.

Olhei-me no espelho, pronto para encarar o cara ruivo e sardento com olheiras fundas e barba por fazer, espetando aqui e ali. Meu cabelo parecia ter sido vítima de algum furacão ou qualquer outro desastre natural, o que para mim significava que ele estava bem e não necessitava de coisas como pentes e afins. Embora a maioria dos homens da minha família tivessem o hábito de cultivar barbas da mesma forma que alguém cultiva uma plantação, eu não tinha esse habito — na verdade, não tinha algo que poderia ser digno de ser chamado de barba na opinião arbitrária do meu avô. O que havia eram fiapos vermelhos que cresciam em lugares desencontrados, tornando impossível ter aquela barba máscula que algumas mulheres gostam. Mas para mim, o trabalho de me barbear parecia um esforço muito maior do que lutar contra um pernilongo ou deixar meu avô feliz permitindo que ele me vencesse numa luta, então a barba tinha o mesmo destino que o meu cabelo: seria deixada em paz, daquela mesma forma.

A batalha para começar o dia na fazenda do meu avô encontrava seu ápice quando a família toda se reunia em volta da mesa para o café. Havia uma escada que ia para o primeiro andar que na minha infância fora motivo de muitos acidentes por causa da pressa para pegar as primeiras panquecas feitas pelo velho. Uma vez, num momento de extrema curiosidade científica, disse ao primo Clark que ele poderia escorregar pelo corrimão até lá embaixo, como faziam alguns desenhos animados. Clark não era um exemplo de perspicácia, embora fosse um exemplo de exibicionismo. No fim das contas, fiquei com as primeiras panquecas do dia, porque meu primo acabou esmagando o nariz contra o piso de madeira no primeiro andar depois de não conseguir controlar sua descida. Depois disso, minhas sugestões para brincadeiras passaram a ser avaliadas com muito mais desconfiança que o costume. E depois se achavam no direito de chamar a mim de molenga.

A mesa ainda não estava cheia naquela manhã. Na certa alguns dos meus primos não tinham sido tão clementes quanto eu e venceram meu avô na tradicional luta. As garotas sempre estiveram fora da lista, atitude que eu acho extremamente machista. Mas disso elas nunca reclamaram, embora admito que elas passaram maus bocados quando eu vim passar as férias por aqui na companhia de uma corneta de torcedor que acidentalmente foi parar no meio da minha bagagem. Infelizmente, minha alegria durou pouco, porque minha prima Mandy resolveu jogar a corneta no meio de um monte de bosta de vaca. Dois dias depois eu fiz uma experiência para comprovar a teoria de que esterco era ótimo para a saúde capilar.

A mesa já tinha pratos dispostos, apenas esperando para serem cheios de panqueca e devorados por estômagos famintos. Meu avô estava de costas para mim, de frente para um fogão velho e enferrujado em algumas partes, ocupado em fazer panquecas para um bando de netos que se empanturravam com comida da cidade. Mesmo de costas e concentrado no que fazia, o velho Bill nunca era pego de surpresa. Não importa o quanto tentássemos pregar alguma peça, ele parecia prever cada tentativa nossa.

— Sente-se, Dereck — disse ele, virando uma panqueca no ar. — Parece que você chegou antes dos seus primos.

— Melhor pra mim — sorri, e me servi de café. Ele veio até mim com um monte de panquecas e colocou no meu prato. Despejei mel e ataquei sem nenhuma cerimônia.

Poderia dizer que estavam todos naquele ano. Porém, seria mentira. Mais que isso: seria uma mentira desnecessária, que não acrescenta nada ao enredo da história, e me daria demasiado trabalho em criar ações e falas para primos que não estavam lá naquele ano. Embora meu avô fizesse de tudo para que todos os seus nove netos comparecessem por pelo menos por uma semana de suas férias, nos últimos tempos as coisas estavam um pouco mais difíceis que o comum. Uma de minhas primas estava numa clínica de reabilitação depois de conhecer os prazeres da cocaína, minha irmã tinha se casado e estava ocupada com a emocionante vida de uma dona de casa e um dos meus primos tinha viajado com a sua sexta noiva. Então, ao todo, só haviam seis netos naquela casa imensa — eu, meu irmão mais novo e mais quatro primos, entre eles o Clark, que pretendia ficar com meu avô e aprender a arte de trabalhar no campo.

Não demorou muito e vieram os outros, esfregando olhos e bocejando. Clark se jogou em cima do banco do outro lado da mesa, e Patrick, meu irmão mais novo, fez a mesma coisa logo depois. Devo dizer que Patrick deveria ser irmão de Clark, tendo em vista a quantidade de barba que esses dois possuem — Clark é um ano mais velho que eu, Patrick tem dezesseis, mas possui mais barba do que eu aos dezoito. Isso é injusto.

Eu estava fadado a uma existência conflituosa como filho do meio. Taylor, minha irmã, tivera um surto e se casara aos vinte e um anos de idade, o que a torna infinitamente mais responsável que eu, já que ela passa seus dias na emoção de cozinhar, limpar e fofocar com vizinhas que sempre têm uma receita secreta de tudo. Patrick, por sua vez, viera ao mundo para mostrar que ele era melhor que eu em tudo, inclusive na altura. Meus modestos um e setenta se tornavam motivo de piada perto de seus um e oitenta e cinco, ombros largos e uma barba digna de algum anão de O Senhor dos Anéis. A genética tem lá as suas curiosidades, mas deixo aqui registrada a minha indignação com a injustiça praticada com filhos do meio.
As coisas não eram muito diferentes quando se tratava dos meus primos. Clark, por exemplo, era o novo orgulho da família, disposto a aprender o ofício de fazendeiro que sabia montar, arar a terra, ordenhar vacas e cortar lenha para a fogueira sem camisa, exibindo seu peitoral cabeludo e esculpido. As mulheres da minha família devem ter ficado presas em algum momento do século XIX ao imaginarem que isso é um exemplo de homem ideal, mas eu definitivamente não sou bom para discutir a respeito de atrativos masculinos. E se as mulheres da minha família tinham suas mentes presas ao século XIX, Clark ia mais além — tinha o QI equivalente a um Neandertal, e nunca sabia em qual bolso estava o seu celular. Até hoje eu não sei como é que ele conseguia telefones de garotas.

Comemos. Clark e meu irmão debruçados sobre o prato parecendo cães esfomeados, mel escorrendo pela barba farta do meu primo. Eu comia alheio à tudo aquilo, tentando não me entregar à selvageria, embora reconheço ser um feito bastante difícil. Na infância, eu e os outros garotos da família gostávamos de fazer competições sobre quem conseguia encher mais a boca com comida durante as refeições. É claro que Clark sempre vencia, mas perder para ele era sempre mais divertido que ganhar — a forma como ele engasgava depois de alguns segundos era divertida demais para fazer qualquer um querer competir com ele.

— Hoje eu e Patrick vamos à cidade — comentou ele em seu dialeto extremamente masculino de quem fala com a boca entupida de panqueca. — Por que você não vem com a gente?

— O que vocês vão fazer por lá?

Ele deu de ombros, café descendo pela garganta enquanto o pomo de adão se mexia.

— O de sempre.

Dizer que meu avô morava numa fazenda seria quase um exagero se eu dissesse isso perto de alguém da família. A verdade é que meu avô morava em uma cidade extremamente pequena e isolada a ponto de parece uma fazenda coletiva. Era daqueles lugares em que as pessoas quase não conhecem as maravilhas da civilização, criam ovelhas e oferecem café ao único carteiro da cidade, que conhece todo mundo pelo nome. A casa do meu avô era apenas um pouco mais afastada do aglomerado principal da cidade, onde havia um pub em que todos os jovens das redondezas se reuniam aos finais de semana para fazer simplesmente nada. Sair da casa do velho até a cidade era um percurso que levava cerca de meia hora num terreno acidentado e numa estradinha de terra onde frequentemente passava um rebanho de ovelhas ou vacas malhadas que usavam sinos na coleira. Então, na minha lógica de pessoa da cidade, meu avô morava numa fazenda. Ponto final.

Quando meu irmão ou qualquer um dos meus primos dizia que iria à cidade para fazer o que de sempre, significava que iam ficar todos empoleirados naquele pub, exibindo suas caminhonetes centenárias, falando com garotas que usavam jaquetas jeans saídas diretamente dos anos oitenta. Algumas ainda usavam aqueles cabelos armados que me lembravam as moças do Abba. Havia cerveja, uma ou duas mesas de bilhar e um junkebox. E isso era a diversão da vida no campo.

— Não sei, talvez eu vá — dei a resposta de sempre, entre um gole e outro na minha caneca de alumínio. Patrick fez um muxoxo.

— Você sempre responde a mesma coisa — resmungou.

— Vocês sempre fazem a mesma coisa lá — rebati, sem nenhum pingo de vontade de continuar uma possível discussão. Patrick, assim como Clark, era incapaz de manter uma conversa que estivesse além do alcance de seu vocabulário extremamente limitado, já que, mesmo sendo irmão dele, eu não entendia o dialeto de arroto que caras como ele e meu primo costumavam usar, na falta de palavras na língua civilizada.

— Se mudar de ideia, a gente arruma lugar pra você — Clark colocou um fim na discussão, na sua eterna esperança de que eu iria aceitar o convite e passar a noite num pub recostado naquele pedaço de ferro enferrujado falando com garotas que ainda não saíram dos anos oitenta. Tudo bem, ele tem boas intenções. Só é ingênuo demais.
Sacudi a cabeça, só para não dizerem que eu sou mal educado. Meu avô continuava a fazer as panquecas, na medida que os outros chegavam para o café. Pelo resto do tempo, não houveram mais comentários a respeito de atividades para jovens naquele fim de mundo.
***

Estar de férias poderia significar muita coisa. Poderia significar uma viagem maluca em busca dos prazeres mais retardados da vida. Poderia significar que eu estava querendo aproveitar o restante da minha adolescência em alguma jornada hedonista baseada na simples desculpa de que eu tinha dezoito anos. Poderia significar qualquer coisa. Mas, para mim, significava que eu passaria o resto dos dias que me restavam enfiado na casa do meu avô, tentando encontrar alguma coisa que fizesse sentido naquela cidade minúscula enquanto ignorava que, há quilômetros de mim, a vida adulta me aguardava, com todas as suas idiotices e torturas.

Em poucas palavras, eu estava fugindo, ou ao menos tentando fazer isso. Talvez estivesse escondido em algum canto, como fazia quando era criança e brincava de pique-esconde pela casa com meus primos. Bastava ficar quieto, encolhido dentro de algum armário ou em algum canto escuro e eles não me achavam. Com sorte, seria assim com a vida adulta: bastava se esconder na fazenda, fingir que está tudo bem e ignorar todo o resto.

Era fácil, confesso. Afinal de contas, a vida no campo te dá todo o apoio para ignorar o que quer que esteja além da sua visão, as horas passam mais devagar e o dia parece ter uma duração muito maior do que na cidade. Você fica mais propenso a respirar mais, já que não existe nenhum cheiro horrível de fumaça nem os demais odores da cidade. Apenas aquele frescor típico de lugares cheios de árvores, grilos que cantam a toda hora, um pernilongo ou outro que insiste em estragar tudo.

Clark e Patrick foram para fora, decididos a mostrar que eram homens de verdade que não queriam nada além do campo pelo resto de suas vidas. Da janela do meu quarto, dava para vê-los debaixo da caminhonete velha e com a lataria enferrujada, de cor já praticamente indefinida. Falavam das melhorias que podiam fazer, talvez trocar o motor, fazer alguma coisa para que ela ficasse mais potente e mais propensa a aguentar aquele terreno acidentado e lamacento. Era engraçado pensar que, apesar de tantas melhorias internas, nenhum deles parecia notar que dar um jeito naquela lataria poderia ser uma boa ideia.

Voltei para o quarto, de porta fechada e caderno aberto em cima da escrivaninha toda rabiscada e cheia de entalhes feitos em momento de muito tédio e pouca inspiração. A madeira amarelada já estava descascando e às vezes as juntas soltavam um rangido de um trabalhador cansado de tanto esforço. Olhar para aquela mesa me deixava meio entorpecido, perguntando o que eu estivera fazendo ali durante tanto tempo. Estava naquele quarto há horas, e o dia ainda estava começando, com resquícios de orvalho na grama lá fora. Mas meu mundo se resumia aquele pequeno cômodo, cheio de pôsteres, brinquedos velhos e livros que de vieram para cá nas férias e nunca mais voltaram para casa. Lá fora, na minha casa, só as expectativas da vida adulta. E o medo.

Tentei imaginar. Imaginação é sempre um bom exercício para quem quer ignorar qualquer coisa, principalmente a realidade. Você pode estar em qualquer lugar, em qualquer época, ser qualquer um. Com a imaginação, eu poderia deixar de ser o adolescente magricela sem nenhuma perspectiva de futuro e ser quem eu quisesse, da forma como quisesse. Pensei em muitas coisas que poderia ser e entre todas elas, escolhi ser um guerreiro alto e de ombros largos, totalmente o oposto daquilo que eu era. E seguindo a regra de ser o meu total oposto, transformei-o em um cara carismático, capaz de colocar medo em todos e ao mesmo tempo passar aquela mesma confiança típica de gente que manda, dizer bravatas para fazer seus amigos rirem em uma taverna e fazer discursos de batalha para inspirar exércitos inteiros. Sendo fã de discursos de batalha, isso seria indispensável. Mais alguns segundos de conjecturas e decidi que o guerreiro seria um campeão na arte de levar garotas para a cama. Prefiro não comentar a respeito das minhas capacidades nesta área. Como disse, não tenho muitos pudores em mentir ao leitor, mas mentir a respeito disso seria tão absurdo que tal mentira seria detectada a quilômetros de distância. Em suma, alguém como meu irmão e meu primo: burro, mas extremamente capaz.

Sendo assim, seria lógico imaginar que eu com meu intelecto supostamente superior não valia de nada, tendo em vista que, diferente daqueles dois, minha capacidade era praticamente nula. Se pudesse ser minimamente capaz, abriria mão de todo o meu QI.

O ato de imaginar-me como um guerreiro forte e corajoso me fez perder a noção do tempo. Súbito, já não estava mais no meu quarto, já não estava mais na fazenda, já não estava mais em lugar nenhum. Estava na pele do guerreiro, vendo os homens de cima, porque era absurdamente alto. Sentia as o suor escorrendo pelo cabelo ruivo e farto, a mão apertava a espada. Não usava armaduras, porque armaduras eram para os fracos que precisavam se esconder atrás de ferros para sobreviver a um combate. Eu estava acima de tudo isso.

E então, a batalha.

Havia inimigos por todos os cantos. Eles corriam e golpeavam e gritavam e matavam e morriam. Morriam muito mais que matavam. Corriam muito mais do que golpeavam. Porque os homens que estavam sob o meu comando não eram apenas um ajuntamento de guerreiros que lutavam juntos. Eram parte de uma máquina de matar que esmagava seus inimigos enquanto espalhava destruição por todos os lados. Alguém soprou um chifre de carneiro, e o som agudo e estridente fez todos gritarem e matarem com mais ferocidade ainda. E eu golpeava com meu machado, esmagava crânios e retalhava lombos com as garras que tinha adquirido.

Eu tinha garras.

E pelo.

E presas.

E matava. Matava mais do que qualquer um, urrava mais do que qualquer um, corria mais do que qualquer um. E os outros mudavam, viravam criaturas iguais a mim. Monstros. Homens. Qualquer coisa entre esses dois termos, que eu não sabia o que era. Havia apenas o sangue dos nossos inimigos tingindo o chão e a nossa vontade de matar que nunca cessava. Até que os corpos caídos não se mexeram mais. Aos poucos a fera se acalmava, os cheiros ficavam menos intensos, o homem emergia na minha cabeça. Todos comemoraram.
Com uivos em vez de vivas.
***

O céu estava colorido de laranja quando emergi do transe como se tivesse passado os últimos tempos submerso em água numa espécie de casulo muito longe da realidade. Tudo bem, era exatamente o que eu queria. E estava ficando absurdamente bom nisso.

Respirei fundo, olhando para o quarto, agora já escuro por causa da hora. Era impossível que tanto tempo tivesse passado desde o momento que comecei a escrever. O sonho, ou o que quer que tenha sido aquilo, parecera um momento fugaz, fruto de um momento de súbita inspiração que se transformara num conto épico que relatava a batalha daquele guerreiro contra seus inimigos. Era rico em detalhes, cheio de bravatas, cheio de sangue, cheio de brutalidade. Havia algo ali. Algo indefinido, bem diferente do que eu estava acostumado. Como se esse algo estivesse escondido por detrás de cada palavra.

Fechei o caderno, curiosamente cansado. Os números vermelhos do despertador digital indicavam cinco e meia e o vento que entrava pela janela me chamava a atenção para uma noite particularmente fria. Tinha passado muito tempo dentro daquele quarto, agora era tomado por uma repentina vontade de sair dali. Respirei fundo de novo, levantei e abri a porta do quarto.
Fui encontrar meu avô na sala, jogado no sofá enquanto a televisão exibia um programa qualquer na tela. Com Clark e Patrick tendo um surto de hiperatividade lá fora, não sobraram muitas coisas para ele fazer além de dar uma dica ou outra sobre a melhor maneira de ordenhar uma vaca ou como guiar o trator. Mas até isso aqueles dois sabiam fazer, então ele acabou ficando na sala, considerando a possibilidade de estar ficando velho.

Sentei-me na poltrona ao lado, num silêncio respeitoso ao seu noticiário. Adultos sempre gostam de silêncio durante o noticiário, porque isso dá a impressão de que o simples ato de ver noticiário os torna mais capazes do que as crianças. Desde pequeno, crianças são instruídas a fazer silêncio para a gravidade dos assuntos adultos, ainda que o adulto em questão esteja babando no sofá sem dar a mínima para a Bolsa de Valores.

— Decidiu sair do casulo, Dereck? — perguntou ele, leve tom de deboche. Certos hábitos são difíceis de se perder.

— Estava escrevendo — foi a resposta genérica, que eu usava como desculpa para muitas coisas. Desta vez, ao menos, era verdade.

— O que você escreve? — ele perguntou novamente, passando por cima da possível piada.

Você deve imaginar que a minha família não dava a mínima para nada daquilo que eu escrevia. E se você cogitou essa possibilidade, está totalmente correto. Minha família achava que eu era louco pelo simples fato de gostar de ler e escrever histórias que nunca se transformavam em livros publicados e postos em livrarias para serem vendidos. Na mente deles, minha inteligência era uma espécie de peso morto na minha vida, uma vez que até hoje, no auge dos meus dezoito anos, ser inteligente não me deixou tão rico quanto o Bill Gates. Escrever também não foi lá grande ideia, segundo eles: a moça que escreveu Cinquenta tons de cinza ficou famosa e eu não.

— É difícil dizer, vô — respondi. Eu nunca soube, e talvez nunca saiba falar para qualquer um da minha família sobre o que eu escrevo. Para qualquer outra pessoa é fácil, mas não para eles. Poderia dizer que eu escrevo histórias de todos os tipos, mas eles não iriam entender.

— E o que te fez ficar o dia todo enfiado naquele quarto?

Um segundo de silêncio.

— Uma história.

— Que história?

Engoli em seco.

— Uma história medieval.

O bigode castanho do meu avô se mexeu. Isso significava que ele estava interessado na história. Ele se ajeitou no sofá, colocando seus cotovelos sobre os joelhos, como se estivesse conspirando comigo a respeito de algo altamente secreto. Quis que eu contasse mais. E eu contei, tentando explicar alguns detalhes que ele poderia não saber, ignorando a possibilidade de que talvez meu avô tivesse algum conhecimento sobre história. É melhor prevenir do que remediar. Por instinto, omiti a parte de que os guerreiros passavam por uma transformação bizarra e decidi mascarar isso com um frenesi louco de batalha que os tornava totalmente sangrentos. Meu avô apenas franziu o cenho, numa expressão indefinida.

— Você tem uma grande imaginação — disse, antes de dar um tapa no meu ombro e sumir na porta da cozinha, em direção ao fogão.
***

Saí da casa, de mãos nos bolsos e sentindo o vento bagunçar meu cabelo mais do que já era bagunçado. Clark estava gravitando em torno de sua caminhonete, checando os botões de seu rádio. Ficou me olhando por trás do vidro enquanto eu me aproximava.

— Você sumiu naquele quarto — comentou. — Logo cria raízes.

Passei por cima do comentário, fingindo não ter entendido. Clark coçou a barba castanha, voltou suas atenções para o rádio, que emitia um chiado irritante.

— Vocês vão para a cidade hoje? — perguntei. Ele olhou para mim, surpreso.

— Sim. Por que?

Respirei fundo.

— Teria lugar pra mais um?
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Mensagem por monstroloko Qua Mar 25, 2015 5:09 pm

Fala Julio!
Li a historia e achei bem interessante cara, principalmente que cada personagem teve sua personalidade e que voce ja deixou uns ganchos prontos pra um, ou varios, proximo capitulo.
Sugiro apenas que voce pense em fazer postagens menores no futuro, mesmo que tenham de ser mais numerosas. Facilita a leitura e não intimida tanto os novatos. Wink
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